Ontem, fui fazer uma prova e me deparei com um texto que achei muito interessante o assunto dele. Resolvi retirar ele e postar para vocês.
Acho que foi um professor de cursinho quem contou em classe o mito
dos andróginos. Parte homem e parte mulher, esses seres eram tão
completos e tão felizes que despertaram a inveja de Zeus. Irado, o
patriarca do Olimpo disparou raios que separaram em duas cada uma das
criaturas perfeitas. Desde então, elas vagam pelo mundo em busca de sua
metade. São solitárias e incompletas. Somos nós.
Não sei o
que os gregos queriam dizer ao criar essa lenda, mas a maneira como nós
a interpretamos, modernamente, é muito clara: existe alguém lá fora que
nasceu para nós. Enquanto não acharmos essa metade (o amor verdadeiro)
jamais seremos felizes.
Muitos de nós acreditamos nisso o
tempo todo. Outros acreditam apenas de vez em quando. Raro é encontrar
alguém totalmente imune a essa espécie de esperança (ou seria
armadilha?) romântica.
Mas eu às vezes me pergunto se essa
é uma ideia construtiva. É saudável imaginar que a nossa felicidade não
depende de nós, mas, sim, de outra pessoa qualquer? Mesmo sem tomar o
mito dos andróginos ao pé da letra, milhões de pessoas adiam o futuro
diariamente à espera de que a vida lhes traga um grande amor, aquele que
vai colocar tudo nos eixos.
Eu pergunto de novo: essa é uma ideia saudável?
Há
um livro do qual eu gosto muito que trata dessa questão – a ideia do
amor romântico – como nenhum outro. Chama-se “Sem fraude nem favor,
estudos sobre o amor romântico” e foi escrito pelo psiquiatra e
psicanalista pernambucano Jurandir Freire Costa, uma das pessoas que
melhor fala dos sentimentos e das emoções no mundo real (que é o
contrário do mundo idealizado no qual a gente, sem perceber, passa a
maior parte da nossa vida).
Nesse livro, Jurandir afirma que o amor romântico – ao contrário de
tudo que nos dizem – não é natural e universal, não é incontrolável e
nem é condição essencial à felicidade humana. Isso seriam apenas coisas
em que se acredita.
Não vou reproduzir os argumentos
minuciosos e nem a prosa erudita do escritor, mas essencialmente ele
afirma que o amor exaltado, sublime e raro que nós endeusamos é uma
invenção social (como a música) e uma crença (como a religião) que pode
perfeitamente ser questionada e modificada. Não existe um jeito eterno e
imutável de amar, diz ele. O amor e a forma de encará-lo sempre
variaram ao longo da história. Se nosso jeito atual de amar nos parece
opressivo, antiquado ou insatisfatório, que tal tentar outra forma de
amar?
É estranho pensar no amor dessa maneira, não?
Estamos acostumados a vê-lo como algo imutável, quase sagrado, que as
pessoas têm ou não têm, conseguem ou não conseguem. Mas claramente não é
assim. Ao redor de nós existem pessoas que tratam o amor de forma muito
diferente entre si. Fulano é muito romântico, quase tonto, enquanto
fulana é de um pragmatismo inquietante: sabe exatamente o que deseja e
vai atrás. Essas são diferenças reais, que mostram que o bicho amor não é
exatamente o mesmo para todo o mundo.
Quando se compara o nosso modo de agir e pensar com o das outras culturas, as diferenças ficam ainda mais óbvias.
Lembro
de ter tido, anos atrás, uma conversa muito interessante com um amigo
nissei que havia morado no Japão. Éramos os dois casados e eu me
queixava das dificuldades do casamento. O amigo, mais velho, respirou
fundo e me disse que, no Japão, eles achavam que casamento era uma coisa
muito séria para ser decidida por paixão. Se você ia passar a vida com
alguém, as compatibilidades eram mais importantes que o desejo.
Na
hora achei aquilo esquisito, mas hoje percebo que ele estava sugerindo
apenas outra forma de olhar para a mesma situação: diante da escolha do
casamento, que tipos de sentimentos são mais importantes?
Nos
últimos dias, eu tenho pensado muito em um aspecto particular da nossa
ideologia do amor, aquele que diz que é impossível ser feliz sozinho.
Não é só a música de Tom Jobim que afirma isso. Tudo que nos circunda
brada a mesma mensagem. Ela está nos filmes, nas novelas, nas conversas.
Ausência de parceiro é sinônimo de infelicidade, fracasso ou
esquisitice. Ou tudo isso junto.
Talvez seja verdade que
as pessoas sem parceiros tendem a serem menos felizes, mas o contrário
certamente é falso: estar com alguém, ter alguém, não é garantia de
felicidade.
A gente sabe disso, a gente vive isso, mas,
socialmente, a gente não divide essa informação. Para todos os efeitos
públicos, vale o seguinte combinado: se a pessoa está casada, ou tem um
namorado bacana, sua vida está “resolvida”. Mas isso é falso, não?
Namorei
uma vez uma moça cujo pai, um sujeito espetacular, casado com uma
mulher encantadora, estava há meses numa terrível depressão. Eu olhava
para o sujeito e não entendia. Ele tinha mulher, filhos, casa,
profissão, amigos e... tinha desmoronado. Os motivos íntimos da
derrocada talvez nem ele soubesse, mas a lição para mim foi clara:
nossas questões interiores não se resolvem com a parceria amorosa, nem
mesmo com a família.
Não adianta nos cercamos de um
cenário de propaganda de margarina (mulher, filhos, cachorro,
condomínio) porque, ao final, nossa felicidade depende de nós, das
forças interiores que nós somos capazes de mobilizar. As pessoas que
amamos nos ajudam, mas elas não substituem nosso amor próprio, nossa
motivação e a nossa estabilidade. Precisamos das pessoas, mas precisamos
ainda mais de nós mesmos.
É por isso que a promessa de
felicidade amorosa às vezes me incomoda. Ela é falsa. Ela é uma forma de
propaganda enganosa. Ele conduz as pessoas numa procura inútil por
alguém que as faça sentir inteiras e completas, quando, na verdade, essa
sensação de inteireza talvez seja inalcançável.
Se a
gente olhar de novo para o mito do andrógino, talvez haja nele outra
sabedoria a ser extraída: a de que nós, homens e mulheres, somos
criaturas intrinsecamente solitárias. Vivemos em grupo, precisamos do
grupo e buscamos conforto na intimidade do outro, no amor. Mas talvez
seja da nossa natureza jamais nos sentirmos inteiros e completos.
Talvez haja em nós uma inquietação inextinguível e uma angústia
que advêm da nossa própria consciência e que nos torna humanos. O amor
seria então um alento, um consolo, uma fogueira que nos protege do frio.
Mas o frio está lá. E a melhor medida da felicidade talvez seja a forma
como lidamos com ele. Como indivíduos, não como casais.
Ivan Martins
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